A Nítida conversou com a paraense Naiara Jinknss, que se identifica como fotógrafa documentarista, filmmaker e educadora social. Seu trabalho dá ênfase a representatividade de pessoas negras e nortistas, com forte viés político e social. Em suas imagens percebemos a proximidade da fotógrafa com as pessoas retratadas, ela se faz presente de maneira física e empática. O mercado Ver o Peso, em Belém, é um personagem muito presente nas narrativas da fotógrafa, que tem relação pessoal com o local, uma identificação que muitas vezes assume forma visceral. Atualmente, Nay está participando do programa Arte na Fotografia, uma competição entre fotógrafas e fotógrafos exibida no canal Arte1 e também participa do coletivo brasileiro de mulheres fotógrafas Mamana.

Nay – Meu nome é Naiara, tenho 29 anos, sou natural de Belém do Pará, mas moro em Ananindeua, quer dizer, morava em Ananindeua e atualmente estou morando em São Paulo.




Nítida – Como tu começastes a fotografar e por quê?
Comecei a fotografar com 18 anos, por aí, foi com 18 anos que eu me interessei, porque eu tava andando na rua com uma cibershotzinha, eu tava no ônibus e eu fiz uma imagem do Ver o Peso. Eu sempre tive uma relação muito forte com o Ver o Peso, porque minha avó foi feirante lá. Só que eu não frequentava o Ver o Peso muito, por essa questão, mas sim porque eu sempre ia lá com a minha avó, mas não na época em que ela vendia, então vira e mexe eu ia pra lá.
E aí eu gostei muito de fotografia, fui atrás de cursos que oferecessem por mais tempo fotografia e eu não encontrava. Fui atrás de jornalismo e era um semestre, publicidade e propaganda era um semestre, até o momento em que uma amiga minha me indicou artes visuais, foi um momento decisivo na minha vida. Eram três semestres estudando fotografia, ou seja, um ano e meio estudando foto. Por mais que eu não gostasse de educação, porque eu era um pouco traumatizada com a educação que eu tive, ter estudado artes visuais foi completamente decisivo na minha história, sabe? Por que eu vejo hoje em dia fotografia como um instrumento de mudança social, instrumento de reparação histórica, saca? De protagonismo, de entendimento, de empoderamento, de tudo. Porque durante muito tempo nós fomos documentados ao longo da história, tudo através de uma ótica branca, sabe, e isso é muito problemático, porque existe um racismo, existe uma estrutura que a gente precisa combater, que a gente precisa reparar, e a imagem é algo extremamente decisivo. Então quem protagoniza essas histórias precisa repensar o que está fazendo com essas imagens, por que está documentando. E será que pode estar documentando isso? Qual é a maneira menos extrativista de fazer uma documentação? Fazer esses questionamentos para que a gente possa usar a fotografia como instrumento de educação, de mudança.
Comecei a fotografar nessa época, me formei em artes visuais, morei um tempo no Rio [de Janeiro], e esse tempo que eu morei no Rio também foi muito importante pro meu trabalho, porque até então eu acreditava que eu era morena, eu não sabia que eu era negra. Então essa discussão, a partir do momento que entra na minha fotografia, eu penso que preciso fazer uma reparação histórica. Por que eu fiz durante muito tempo piadas racistas, eu era uma pessoa muito escrota, muito baixa. E depois com o tempo eu fui entendendo o porquê eu agia dessa maneira, e fui procurar ajuda, fiz terapia durante um tempo. E fui entendendo que muitas vezes eu era racista por uma questão de contexto social, e que eu precisava repensar isso. E quando você é mulher, é muito mais fácil repensar seus privilégios, não precisa nem estudar muito pra saber.



– Como é o teu trabalho com a fotografia? Podes descrever um pouco a experiência de fotografar nas ruas da cidade?
Então, quando eu vou pra rua, hoje em dia, é muito pensando nas coisas que eu era no passado, pensando no entendimento que eu tenho agora, no que eu posso fazer, o que eu posso mudar, como eu posso conversar, quais são as coisas que eu acredito. Será se eu posso perder minha paciência? Será se eu posso explicar? Como que eu através da minha foto consigo mudar, reparar, mudar alguma coisinha, sabe? Como eu consigo dialogar com as pessoas sabendo que a fotografia é uma linguagem? Então fico pensando muito que eu tenho que trabalhar sobre o entendimento do negro, o entendimento do nortista enquanto negro. Preciso documentar o quanto a gente precisa se empoderar do nosso brega, das nossas raízes, da nossa música, da nossa cultura, porque o Sudeste e o Sul e tudo que vem de fora parece sempre que é muito mais interessante, só que eu acredito que a gente tá num momento também de despertar. Embora a gente também esteja em um momento político caótico, horrível, eu acho que esse é um momento muito decisivo, em que a gente está vendo mais mulheres adentrando esse espaço, fotografando, seja com celular, seja, sei lá, filmando com uma câmera foda, incrível, sabe. E também existem outras questões, desse classismo dentro da arte, dentro da fotografia.
Mas eu fotografo muito também pensando nisso, que independente do instrumento que você tá usando como suporte pra fotografar, o que importa muitas vezes é o sentimento, a relação que você está estabelecendo com o outro, com aquele local, o quanto você está disposta a ouvir, o quanto você está principalmente disposta a deixar naquele local, sabe, é uma troca. E também pensar que a nossa fotografia é feita através de toda a nossa bagagem, dos filmes idiotas que a gente vê, das bandas idiotas da nossa adolescência, ou seja, por conta de qualquer outra coisa que nos inspire, sabe. Por conta da nossa família, sabe. Então acho que é muito importante pensar na nossa fotografia como essa arma, para que você possa mudar essa realidade. Então quando eu penso nisso eu sinto vontade de fotografar, entende?




– Sentes alguma discriminação ou medo de fotografar pelo fato de ser mulher?
Então, fotografar Belém é diferente de fotografar qualquer estado, hoje em dia eu me sinto mais inclusa porque eu não faço questão de parecer que eu não sou dali, parecer que eu não gosto daquelas pessoas. Eu não vou fotografar só pra pegar uma imagem. Às vezes eu vou pro Ver o Peso só pra comprar peixe, porque eu ainda como peixe, ou então eu vou pro Ver o Peso só pra rever um amigo meu que é fileteiro. Fileteiro é, ele tira as escamas, tira as espinhas do peixe, tudo. Ou por que, sei lá, quero só andar por ali. Então, eu penso muito nisso, saca, fotografo por esses motivos, me aproximo por esses motivos, e vou construindo um laço naquele espaço. Seja no Ver o Peso, ou seja em São Paulo que eu tô aprendendo agora a me adaptar. Tô observando essa cidade, então, em qualquer lugar que eu vou, eu observo muito. E vejo de que maneira eu posso adentrar naquele espaço sem me colocar em risco. Compreendendo que sou mulher, compreendendo que eu sou mais “vulnerável”, porque enfim, nossa sociedade é escrota. Então você tem que pensar muito nesses locais em que você está adentrando, pensar no que você está disposta a experenciar, sabe, e começar a se movimentar para que aquilo possa acontecer.
Acima de tudo, fotografia também, eu acho que é um gesto de coragem, sabe. Porque eu tenho muito histórico de homens, quando eu procurava alguém pra me acompanhar pra Ver o Peso, muita gente falava “Ah, eu vou no sábado”, mas nunca me chamavam, ou então espaços fotográficos meio que fechavam pra mim, se fechavam pra mim. Por que enfim, parece que ninguém queria se misturar, existem muitas panelinhas de artistas da elite intelectual paraense, e eu não me encaixo nesse padrão, porque eu cresci longe da capital, eu cresci em Ananindeua, fica a 15 km de Belém, só que é outra realidade. Hoje em dia a gente tá mais próximo de Belém porque muita coisa mudou, hoje muita coisa é mais acessível em Ananindeua, então às vezes a gente nem precisa sair de Ananindeua pra fazer alguma coisa em Belém. Hoje em dia a gente já tem tudo. Então isso é muito doido e também foi muito decisivo pra eu estar inserida no meio dos fotógrafos e artistas de Belém ou não, entendeu, é um pouco disso também.
E sempre, óbvio, sempre me sinto discriminada, eu vejo como as pessoas me olham quando eu chego no ambiente, seja porque eu sou negra, porque eu sou tatuada, porque eu tô fotografando às vezes com o celular. Muitas vezes as pessoas ficam, sei lá, muitos homens chegam pra falar com a gente como se estivessem apenas no local de nos ensinar alguma coisa. E não pode ser assim, não pode ter essa arrogância, essa soberba, essa prepotência. Enfim, não que um homem não possa ensinar para uma mulher, não é esse o ponto, mas tem todo um trejeito para falar, porque se fosse ao contrário a fragilidade masculina ficaria bem afetada. Mas, enfim, sempre existe uma disputa, às vezes até mesmo entre mulheres, mas eu acho que a nossa pior arma sempre vai ser o homem, sabe, o homem branco, ignorante, que tá ali naquele espaço.
A última vez que eu passei por uma situação chata, que eu fiquei muito puta, foi quando eu tava em Salvador fotografando Iemanjá, e eu tava abaixada, eu tava fazendo uma posição de 90 graus pra fotografar uma parada, e tinha um brother atrás de mim, um gringo de uns dois metros, fotografando com uma câmera foda, e eu tava fotografando de celular. Eu fiquei um pouco na frente dele, e eu estar na frente dele não alterava porra nenhuma na foto dele, mas ele tocou no meu ombro e fez com a mão assim pra eu sair, como se fosse um cachorro, saca? Eu olhei pra ele e eu falei “excuse-me?” né, porque, enfim. E aí eu saí, mas… Enfim, existe uma competitividade muito ruim. Que é um medo, eu vejo essa discriminação como um medo de perder seus privilégios, um medo de perder seu local de poder documentar como quer, de um jeito totalmente descuidado, de um jeito totalmente extrativista, sabe?
Então, quando um homem vê uma mulher entrando naquele espaço (não que mulheres estejam livres de fazer merda né, não é isso), mas na maioria das vezes os homens tem medo das mulheres e do que elas vão documentar. E da potência que existe na fotografia feminina, sabe? E também muito importante a gente colocar em pauta que existe uma urgência por fotógrafas trans. Porque eu posso documentar uma realidade trans, mas eu não sou uma mulher trans pra saber como que é, então só uma mulher trans pra documentar. Então a gente precisa tornar esse espaço acessível pra elas também, porque elas estão mais a margem, porque nem ser reconhecida como mulheres elas são. Então são vários pontos, várias questões, várias demandas que a gente precisa se alertar, se policiar, e que o homem não quer. Então essa discriminação vem daí, e vem do medo do que a gente tem pra falar, sabe?




– Te consideras feminista? Teu trabalho aborda o feminismo de alguma maneira?
Claro, me considero muito feminista. Eu acho que deu pra perceber ao longo do meu discurso inteiro o quanto eu sou feminista. Eu lembro que quando eu voltei do Rio (eu passei dois anos e oito meses no Rio) eu encontrei uma amiga minha, que é a Isabela Chaves, ela é incrível, ela faz cinema. E aí ela falou assim: “Eu vou te levar pra conhecer o verdadeiro feminismo em Belém”. E eu lembro que eu cheguei numa casa e tinham outras mulheres da mesma idade que eu, outras artistas, acho que 95% eram mulheres negras. E tinha uma senhora tricotando, a dona Maria Luísa, ela é do Cedenpa, uma rede de fortalecimento que tem da rede negra em Belém. Era um sábado de manhã e depois falaram, “Olha, a gente vai iniciar a nossa fala com a dona Maria”. A dona Maria começou a falar, deu logo um tapa na cara de todo mundo né, porque ela disse assim, “Bom, hoje em dia a gente tá numa geração que é afrontamento. Só que antes eu vim de uma geração que era arrombamento, ou seja, pra vocês estarem aqui num sábado de manhã, a gente teve que abrir espaço. Então de que maneira vocês vão abrir espaço com o privilégio que vocês tão tendo, pra outras mulheres que estão atrás de você, falaram também, pra poder ter esse momento de lazer aqui, pra poder discutir alguma coisa?”. E aí eu fiquei pensando muito nisso. Aonde meu feminismo tem alcançado. Será que as minhas fotos tem alcançado a dona Angélica que tá lá no Combú na Amazônia rural, da mesma maneira que consegue alcançar uma fulana que tem acesso a um colégio particular, uma universidade particular. Enfim, pensando muito nisso, nessas discussões, sabe. E ser feminista a ponto de dialogar com outras mulheres, compreendendo todas as vaidades, sabe, então, se colocando nesse local, sabe, de aprender, não acreditar que sabe tudo, porque não é assim, ninguém aprende tudo, ninguém nasce sabendo de tudo. Então você precisa se calar muitas vezes, ouvir, pra ver, saca? Então, eu acho que é um pouco disso também.







Fotografias retiradas do Facebook e do Instagram da fotógrafa
Entrevista realizada por Leli Baldissera em 29.02.2020