Nítida Entrevista – Ângela Ferreira

Lançamos a partir de hoje no blog a série de entrevistas que realizamos durante o FestFotoPoA 2016 com fotógrafas e outras profissionais da imagem. Tivemos conversas muito engrandecedoras sobre a posição que as mulheres ocupam dentro do cenário fotográfico que nos deram a chance de conhecer um pouco mais sobre realidades nacionais e internacionais.

A primeira entrevista que compartilhamos é com Ângela Ferreira, fotógrafa e diretora do festival Encontros da Imagem (Braga, Portugal). No vídeo fizemos um apanhado de alguns momentos da entrevista gravada e, em seguida, a entrevista completa transcrita.

 

Nítida: Tu poderias te apresentar e falar da tua relação com a fotografia?

Ângela: Meu nome é Ângela Ferreira, sou primeiramente artista, fotógrafa, trabalho com artes visuais há mais de 20 anos. Tenho vindo a desenvolver trabalhos não só de exposição, mas também de publicação de livros. Há 10 anos atrás fui convidada a integrar o festival de fotografia Encontros da Imagem. É um festival português com sede em Braga. Braga é uma cidade muito religiosa, uma cidade com 2000 anos de história, situada no norte de Portugal. Desde então tenho vindo fazer não só a seleção dos artistas como também a dirigir um festival que é um dos únicos festivais nacionais e um dos mais antigos na Europa. Sobre eu, sobre meu trabalho autoral, tenho um lado muito afetivo com a imagem, portanto o meu trabalho entre pessoal e profissional mistura-se muito e eu sou completamente “Una” nesse aspecto: uma artista que desenvolve trabalho fotograficamente fulltime.

N: Tu consegues conciliar de uma boa forma essas duas coisas. O festival é anual?

A: O festival é anual, acontece em setembro, ocupa cerca de 20 espaços na cidade, é possível ocupar os espaços de distintas formas, desde galerias, museus, até espaços mais alternativos, como casas em decadência. Todos os anos há uma temática associada ao festival. No ano passado celebramos o “poder e a ilusão”. Não só o poder político, que consome e desgasta, mas também o poder da imagem, e no caso o poder da fotografia, de conquistar, de iludir, de conquistar também outras audiências. E no fundo é um desafio muito grande este que a fotografia atravessa. Neste ano estamos a celebrar, em 2016, o festival já está em preparação, e vamos festejar a felicidade. Creio que é um tempo interessante para refletir sobre essa questão social.

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N: E sobre o teu trabalho pessoal como fotógrafa… Tu estudastes fotografia? Tens temas sobre os quais tu gostas de lidar, gostaria de falar sobre um trabalho mais específico?

A: O meu trabalho é fotografia documental, mas tem um rasgo que, poderia dizer, feminino, na sua abordagem. Não é de todo desligada minha identidade também enquanto mulher na forma como vejo e construo meu mundo fotográfico. Por isso é interessante a relação umbilical que estabeleço com as imagens. São fotografias muitas vezes de mulheres, que também retrato, mulheres grávidas ou mulheres próximas de darem a luz. Fiz um trabalho de doutoramento sobre a estética da afetividade, foi essa a questão mais proeminente da tese que vou defender. E revelou o trabalho que desenvolvi durante 10 anos nas nações indígenas do nordeste do Brasil. Portanto é um trabalho poético de um circuito íntimo que estabeleci com as várias pessoas com quem trabalhei durante esta época e que faz uma representação de como as pessoas se relacionam com a imagem. De que forma constroem sua concepção visual e de como se autorrepresentam e, portanto é um trabalho antropológico, é um trabalho com um caráter naturalmente poético e literário também. Faz muita relação com nossos poetas, com o lirismo e sem dúvida é um trabalho que me deu grande gosto fazer, é um trabalho de encerramento de um capítulo do que foi o meu trabalho artístico. Eu fiz o doutoramento com uma orientadora brasileira na área da tecnologia digital, mas muito conhecedora das nações indígenas e, portanto é uma relação muito interessante entre o que é o xamanismo e a arte digital e portanto nesse aspecto a relação indígena e a tecnologia foram muito importantes para o trabalho. Por outro lado tive o acompanhamento de uma investigadora portuguesa que me ajudou na parte de metodologia de investigação e por isso as duas componentes foram muito importantes para o meu trabalho.

N: Eu gostaria de retomar um pouco a parte que tu falastes sobre o feminino dentro da fotografia e sobre o afeto. Tu verias uma forma feminina de fotografar ou temas femininos ou acha que isso não existe? Poderias falar um pouco sobre essa questão do feminino e sobre como a mulher se representa?

A: Há um olhar muito particular na forma de ver feminina e não significa que essa forma de ver seja específica da mulher, porque também há formas de ver muito femininas que são específicas do homem. Mas, no que concerne ao meu trabalho, sem dúvida há um olhar feminino. Acima de tudo porque procura ter um lado respeitador da mulher e naturalmente há muita poética e muita nostalgia nas imagens. São imagens que carregam uma carga afetiva importante e por isso, sim, sem dúvida, há uma forma e um gênero feminino. Agora se é do homem ou da mulher, creio que é distinto, é relativo. A mulher tem um lado naturalmente poético, sensível, e, portanto todas essas características são visíveis também na forma de fotografar.

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N: Dentro dos festivais que tu participas como fotógrafa ou no festival do Encontros da Imagem, na parte da direção, como tu vês a mulher dentro da fotografia? Como fotógrafas, como organizadoras… O protagonismo ou não da mulher. Existe machismo ou não dentro desses lugares?

A: Existe, eu acho que mulher ainda tem muito pra conquistar, já conquistou muito terreno. Sem dúvida a mulher é um ser que tem muita riqueza, consegue fazer várias coisas, no sentido de se organizar, ser mãe, ser profissional, ser estudiosa, ser também uma pessoa que pode desenvolver trabalho artístico, e portanto a mulher passa por tremendos desafios ao longo da sua vida. Portanto é natural que nem sempre consiga ter o lugar que merece, mas é com muito regozijo que digo que tenho encontrado incríveis mulheres fotógrafas. Não é uma seleção que procuro dar destaque às mulheres, mas de fato elas se sobressaem, as mulheres tem tido um papel muito ativo na presença artística e visual. Sobre machismo, não sinto na Europa, sinto que no Brasil possa haver, e tem a ver também com a história do país, mas espero que tudo isso se desvaneça, essa presença machista. Porque o ser humano é múltiplo, díspar, e, portanto a mulher tem características que o homem precisa valorizar e igualmente o mundo também.

N: Teria alguma fotógrafa que tu citarias que influenciou teu trabalho, que te inspira?

A: Há várias. Por exemplo, a Nan Goldin que é incrivelmente poderosa com seu trabalho íntimo e revelador da decadência em que viveu e, portanto, seu lado mais diário de sua vida enquanto quase extensão de sua arte. Creio que não tenha influenciado meu trabalho, mas creio ser uma mulher importante revelar. E, realmente, foi resultado também de muitas atitudes machistas em sua vida. Depois, com certeza há que citar outras mulheres no lado mais nostálgico e poético que também influenciaram muito meu trabalho. Rinike Dijkstra é incrível, é muito jovem, mas tem um poder muito interessante em como a fotografia e a pintura se relacionam e que também posso admitir a sua influência. Creio que as minhas referências principais são essas.

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N: Como tu tens contato com trabalhos de várias fotógrafas em leituras de portfólios e no festival, percebes alguma temática específica que seja ligada ao que as mulheres estão produzindo?

A: Eu acho que as preocupações das mulheres e suas inquietações são muito reveladas na fotografia, talvez mais do que o homem. O homem é mais prático na demonstração da imagem pela estética apenas. A mulher é mais preocupada com as questões mais sociais, mais humanas e talvez a generosidade como uma característica da mulher venha mais à tona nesse aspecto. A mulher tem um lado também de muito autorretrato, há uma procura da sua própria consciência, autoconsciência, isso é muito presente, isso é evidente. É uma pergunta que é naturalmente pertinente, mas que há múltiplas formas de se revelar e com certeza há uma riqueza em haver mulheres a fotografar. Mas é isso, a poesia, a nostalgia, a autorretratação, são temas que são muito vivos nas leituras de portfólios.

N: Tu ligas isso talvez com o fato de que dentro da história da arte a mulher sempre foi muito retratada pelo homem. E talvez o autorretrato, essa vontade de agora ela poder ser quem retrata, ser tão importante estar falando sobre suas questões que sempre foram faladas pelo outro…

A: O autorretrato é uma possibilidade de autoconhecimento, portanto o autorretrato revela algo que a mulher ainda não consegue… mas não é só a mulher, o homem também. O autorretrato traz muito aquilo que é o desejo da aproximação do autoconhecimento. Agora, se isso tem algo a ver com a forma como a mulher foi retratada… O gênero feminino é um gênero muito atraente e naturalmente é um tema muito desejado e a pintura sempre refletiu o corpo feminino e ainda bem que isso aconteceu. E também é importante que a mulher possa revelar o seu trabalho, a  forma como vê a si mesma, e nem sempre é tão bonito quanto foi representado. Há angústia, fúria, nessa retratação, há muita confusão nessa procura. Mas é realmente um tema inesgotável, o feminino. As questões de gênero, cada vez mais proeminentes e sempre foram temas muito interessantes, não só através do autoconhecimento, da autorretratação, mas também como as mulheres criam, como as mulheres se revoltam, a nível social. Eu costumo lembrar das “Guerrilla Girls”  nos anos 60, em que atribuíam a força, a sua força mascarada através de outros elementos e signos e isso realmente mostra que mulher é poderosa.

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N: Como tu circulas entre o Brasil e a Europa, tu vês diferenças entre o comportamento machista nesses dois lugares?

A: Eu acho que a nossa sociedade ainda tem muito que evoluir no cuidado pelo outro acima de tudo. E depois, em segundo plano, pelo respeito ao gênero, gênero feminino no caso. Naturalmente há sociedades mais fechadas, sociedades mais conservadoras e normalmente são sociedades que tem mais dificuldades a nível econômico. Essas sociedades não conseguem ver no outro um ser múltiplo, diferente, rico, e, portanto, por esse desconhecimento maltratam o outro. Isso não é só entre o homem e a mulher, mas também entre os homens em si. Há países tão grandes e com tantas carências, a falta de conhecimento pode ser reveladora do mau trato do outro e, em última análise, da mulher. A mulher é uma figura suprema na organização familiar, na forma como conduz a sua vida, como educa os filhos, como pode passar o seu legado como mãe, avó, para os netos e filhos e, portanto esse lado da mulher não pode ser nunca subestimado. A questão da Europa, a Europa contém outro acesso à economia, ao conhecimento, ao saber, o machismo é uma coisa que já vai se diluindo. Em outras sociedades ainda existe uma forma muito vincada e, portanto completamente descontrolada e até selvagem que precisa ser tratada e aniquilada. Eu vejo principalmente nos lugares mais pobres, que o homem é mais bruto no aspecto do cuidado que deve oferecer à sua esposa, à mãe dos filhos, isso pode se sentir. Mas às vezes acontece que há machismo ainda muito camuflado e acontece muita violência doméstica sem imaginarmos sua existência, até com os nossos amigos mais próximos talvez isso aconteça. É uma pena no século 21 uma coisa como essa continue a ser tão vincada. Creio que o que vocês estão a fazer é nobre porque nos ajuda a pensar sobre este tema, ainda vivo e que ainda precisa ser apagado.

N: Pensando em todas essas questões, precisamos ainda hoje do feminismo?

A: É uma pergunta muito difícil de responder, porque era bom que não fosse preciso, era ótimo que não fosse necessário ter que nos rebelar, ter que lutar e bater o pé pelos direitos. Isso seria sinônimo de que as questões estariam resolvidas, mas acredito que ainda seja necessário fazer essa luta e não esquecer temas tão importantes quanto a violência, quanto o respeito pelo próximo. Eu preferia que não existissem esses movimentos, mas eles aconteceram por razões muito válidas e devem existir enquanto houver qualquer margem de violência.

N: Tu te consideras feminista?

A: Eu sou muito orgulhosa de ser mulher, me sinto muito feliz no papel de mulher, o fato de alegremente trazer essa bandeira enquanto mulher faz-me também uma feminista. No sentido de defesa, não no sentido de reclamar, pois felizmente tenho a sorte de não ter a necessidade de reclamar, mas faz sentido que eu fique feliz no meu papel de mulher, além de que pode contribuir para causas, que me localizem neste tempo, neste lugar, neste pensamento sobre o que é ser mulher.

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Festival Encontros da Imagem: http://encontrosdaimagem.com/

Site pessoal da Ângela Ferreira (Ângela Berlinde): http://www.angelamferreira.me/


Um comentário sobre “Nítida Entrevista – Ângela Ferreira

  1. Prezadas, Venho acompanhando as publicações de vcs sobre fotógrafas de todo o mundo e gosto muito das matérias. Gostaria de sugerir uma matéria sobre fotógrafas da Polônia, pioneiras e atuais, é possível? Aguardo, grata. Izabel

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