
A segunda edição do San José Foto, festival internacional de fotografia do Uruguai, ocorrerá em Abril de 2016. O tema desta edição será “Gênero” e a curadora responsável é Cristina de Middel, fotógrafa conhecida pelo seu trabalho “Os Afronautas”.
Discutir gênero é urgente e necessário em todos os campos. Um festival internacional de fotografia trazendo essa temática, com uma curadoria feminina, mostrou-se uma ótima notícia. No entanto, algumas contradições se relevaram antes mesmo do início do festival, como por exemplo, o fato de só terem sido convidados fotógrafos homens.
Cristina de Middel falou sobre o assunto em uma entrevista no blog do San José Foto na plataforma Medium. Nós da Nítida achamos seu discurso um desserviço a luta feminista. Após ler suas respostas, ficamos com vontade de conversar com ela sobre feminismo e representatividade. Sendo assim, nos propomos a contra-argumentar sobre algumas de suas afirmações na entrevista. Sob nosso ponto de vista, a curadora perpetua um pensamento machista, tanto na seleção dos trabalhos fotográficos quanto na sua fala. Seguem os trechos escolhidos:
“Se você tiver um discurso que fale pelas mulheres, logo te taxam como feminista, como radical, já tapam os ouvidos e te dizem que você é uma feminista. Mas para mim não é ser feminista, é simplesmente um discurso igualitário, no qual reivindicamos direitos iguais.”
Cristina, por que tanto medo de ser taxada de feminista? Ser feminista não é algo ruim, é justamente lutar por direitos iguais. Precisamos, inclusive, trazer à luz o conceito de “feminismo” para que ele deixe de ser taxado como radical. Seguem alguns vídeos elucidativos sobre o tema e, como diz a moça do primeiro vídeo: “Se você diz que não é feminista, pelo menos entenda o que o termo realmente significa.”
What Saying ‘I’m Not A Feminist’ Really Means: https://www.youtube.com/watch?v=ygsVEouHU68
“Feminism” is Not a Bad Word: https://www.youtube.com/watch?v=afcgtGm0br0
We should all be feminists: https://www.youtube.com/watch?v=hg3umXU_qWc
“Então, eu entendo que a mudança, nesse sentido, tem que vir mais pelo lado dos homens do que das mulheres, porque nós já temos bem claro o que temos a fazer. É por isso que o chamado tem que vir dos homens. E como eu tenho uma posição de poder na curadoria, resolvi dar voz a todos àqueles que para mim podem fazer mais pela mudança: os homens que falam sobre gênero e os homens que tratam de temáticas femininas. Os homens que tentam compreender e explicar as mulheres de uma outra forma, não superdramática, mas de uma maneira normal, relaxada. Simplesmente homens falando de mulheres.”
Novamente, Cristina, o teu pressuposto está equivocado. O chamado não tem que vir pelo lado dos homens. Feminismo é sobre mulheres falando, sobre dar poder de voz para as mulheres. Justamente por você ser uma mulher bem sucedida, poderia ter usado sua posição de poder para empoderar suas irmãs. E existem muitas mulheres falando sobre gênero e temáticas femininas, do lado de dentro, de quem entende do assunto, pois sofre com ele a vida inteira. De homens falando de mulheres já estamos fartas! Queremos mulheres falando sobre mulheres, e mulheres dando espaço para mulheres. Além disso, tratar a questão de gênero resumindo ela à dicotomia homem-mulher é um tanto quanto rasa. Hoje em dia a discussão já não se resolve de forma binária e heteronormativa, é necessário expandir os horizontes. Mas comecemos pela questão do empoderamento feminino:
O que é empoderamento? http://www.revistacapitolina.com.br/o-que-e-empoderamento/
Empoderar! http://blogueirasfeministas.com/2011/04/empoderar/
7 razões para você empoderar uma garota ao invés de explicar feminismo para um cara: http://capricho.abril.com.br/vida-real/7-razoes-voce-empoderar-garota-ao-inves-explicar-feminismo-cara-828639.shtml
“Conheci seu trabalho em uma apresentação que fez no Photo España, e me pareceu muito divertido. Fala da obsessão pelo corpo, pelas modelos. Algo que é típico das mulheres e que é a semente de muitos males, como a anorexia, a bulimia e outros problemas alimentares quase típicos das mulheres.
Então, achei muito interessante um homem que joga com essa obsessão. Além disso, o trabalho também é muito atrativo esteticamente: uma aproximação do homem à moda e a um universo que é tipicamente feminino.”
Precisamos rever essa palavra “típico”. A obsessão pelo corpo e os males da anorexia e bulimia não são “típicos” das mulheres, pois não são naturais e inatas ao gênero feminino. Fazem parte de uma construção social em que o corpo da mulher é constantemente objetificado e encaixado em um padrão de beleza. As mulheres acabam fazendo mal a própria saúde para serem aceitas dentro dessas normas. Falar que o universo da moda é “tipicamente” feminino também não cabe, mas sim que impacta mais a forma de viver das mulheres, pois são julgadas pela sua aparência e sua vestimenta em níveis muito mais elevados que os homens o são, como comprovam os textos selecionados.
Mulheres: corpos sempre disponíveis: http://blogueirasfeministas.com/2013/10/mulheres-corpos-sempre-disponiveis/
O corpo da mulher como propriedade da sociedade: http://www.lado-m.com/o-corpo-da-mulher-como-propriedade-da-sociedade/
Pugliesi e a cultura da magreza a qualquer custo: http://lugardemulher.com.br/pugliesi-e-a-cultura-da-magreza-a-qualquer-custo/
Three decades of thin: How the fashion business promotes anorexia: http://www.businessinsider.com/three-decades-of-thin-how-the-fashion-business-promotes-anorexia-2012-3
France votes down to ban ultra-thin models in crackdown on anorexia: http://www.theguardian.com/fashion/2015/apr/03/france-bans-skinny-models-crackdown-anorexia
“A obra de Nicholas é quase uma história de sua própria experiência. Ele é um chileno que viveu em alguma parte da Europa e sua família decidiu que a mulher voltaria a trabalhar e que ele seria o responsável pelas crianças. Então, ele passou a documentar todo o processo: como ele mesmo se tornou dono de casa, cuidando de seus filhos e de tudo. Nicolas mostra-nos essa contrapartida do homem sendo mulher de uma maneira muito agradável, muito delicada e que tem muito a ver com o tema.”
Homem sendo mulher? O que é ser mulher? Ser dona de casa e se dedicar integralmente a cuidar dos filhos? Os homens não tem responsabilidades nas tarefas domésticas e na criação das crianças? A domesticidade e a maternidade são comportamentos esperados de uma mulher em nossa sociedade, mas isso não é ser mulher. Até o famoso “instinto materno” é questionado e construído socialmente, como explica a psicanalista Agna Farias no vídeo abaixo. Também podemos ver homens pais exercendo seu papel de homens e pais no ensaio Swedish Dads, do fotógrafo Johan Bävman, em que ele retrata a rotina de pais suecos em sua licença paternidade de 480 dias:
Psicanálise e literatura: “Precisamos falar sobre o Kevin” e “Instinto materno”: https://www.youtube.com/watch?v=tQ7qw6s3uXs
Projeto Swedish Dads: http://www.johanbavman.se/swedish-dads/
“Com Guillermo, propus o desafio de fazer um diário pessoal, mas não como se fosse uma mulher; não a partir do ponto de vista das mulheres, porque é muito fácil. O que eu proponho é que simule o comportamento de uma mulher, mesmo que até pareça um pouco “fake”. De uma forma direta seria para ele fazer um diário íntimo de uma mulher, sendo um homem.
Mas, no final das contas, não importa se vai conseguir chegar ao que é esperado, o melhor é o exercício de pensar o que seria o diário íntimo de uma mulher por um homem, o desafio de encarnar intimamente uma mulher.”
Novamente, Cristina, o que é ser mulher? Qual é o comportamento de uma mulher? Não precisamos de um homem emulando comportamentos considerados femininos. As mulheres têm tanto a falar sobre si, tantos diários íntimos com possibilidade de abrir os olhos para assuntos que são escondidos… Existe um conceito chamado “lugar de fala”, em que a classe oprimida tem prioridade para falar sobre o assunto que ela vivencia. No caso, uma mulher teria prioridade em falar sobre sua vivência íntima em um diário, mas como é um trabalho artístico há a licença poética de criação. Por outro lado, a prática do olhar estrangeiro remonta em muito o imaginário europeu sobre o exótico indígena latino-americano fotografado no começo do século XX ou, mais recentemente, do continente estereotipado retratado pela religiosidade, calor, sexo e violência.
“Creio que uma das coisas mais importantes de um festival, além das pessoas que vão e dos encontros que podem criar, é dar visibilidade aos fotógrafos convidados que tem suas obras expostas ali.”
Justamente por dar visibilidade aos fotógrafos e obras expostas, não entendemos porque você não escolheu dar visibilidade para as fotógrafas mulheres que falam sobre o tema de gênero. São muitas e são muito boas. Ficamos decepcionadas com a sua atitude, pois teve uma grande oportunidade nas mãos para fazer história nos festivais de fotografia – conhecidos por ser um meio já dominado por homens – e não a aproveitou. Somos fãs de seu trabalho em fotografia, mas, falando de gênero, sentimos falta de propriedade sobre o assunto e irresponsabilidade em perpetuar ideias tão retrógradas e equivocadas.
Discutindo o tema e diante da oportunidade dada à Cristina, nos questionamos: quais seriam as fotógrafas e trabalhos que entendemos aptos a bem elucidar o tema do Festival? Este será o tópico do nosso próximo post. Até lá!
Muito obrigada!
Acho importantíssimo esse debate.
Esclarecer como o machismo está tão entranhado e arraigado na nossa cultura que ficamos reproduzindo sem perceber é primordial pra qualquer mudança.
É preciso fazer homens e mulheres repensarem o que entendem por gênero, feminismo e tudo o que vem atrelado nisso. E acho ainda mais importante questionar exatamente quem chegou a alguma posição de poder sobre as decisões tomadas desse lugar privilegiado.
Muito obrigada.
CurtirCurtido por 1 pessoa